Em 1º de julho de 2021 foi instituída a Lei n.º 14.181, que fez alteração na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, denominada como Estatuto do Idoso, com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
A situação de superendividamento das pessoas físicas se caracteriza pela impossibilidade manifesta para o devedor de boa-fé de honrar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas.
Não há uma quantia que defina o valor mínimo de débito a partir do qual se pode considerar o devedor como superendividado. Essa aferição dá-se mediante comparação entre o ativo e o passivo do indivíduo e de sua família, atentando para as particularidades do caso, como as necessidades básicas destes.
Para isso, foram criadas as espécies do superendividado passivo e ativo. Considera-se passiva, aquela pessoa que é vítima de um fato superveniente, chamado de “acidente da vida”, como a perda de uma atividade remunerada ou acometimento de doença grave por um familiar próximo ao devedor.
Já o ativo é caracterizado pela grande acumulação de dívidas. É a pessoa que gasta mais do que ganha. Mas nem todos que se encontram nessa situação agem de má-fé. Por tal razão, em relação ao superendividado ativo, criou-se outra classificação: consciente x inconsciente.
O superendividado ativo inconsciente é o consumidor que agiu de forma impulsiva e imprevidente, mas não possuía intenção de inadimplir, ou seja, ausência de má-fé.
O superendividado ativo consciente é o consumidor que, de má-fé, contrai dívidas sabendo que não vai honrá-las. Há a intenção deliberada de não pagar, por isso não deve receber o abraço da proteção estatal ampliada.
O objetivo da Lei não é só proteger e restabelecer a saúde física e financeira do indivíduo, mas também manter a economia em ordem.
Portanto, a nova Lei trata exclusivamente de dívidas de consumo, que são quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes da relação de consumo, tais como, operação de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
A Lei faz uma ressalva de que as regras não se aplicam às dívidas que tenham sido feitas por fraude ou má-fé, a realização de contratos dolosos sem o propósito de pagar, bem como, se o produto ou serviço proveniente dessa relação for de luxo ou de alto valor (art. 54-A, p. 3°).
Neste ponto, é importante deixar aberto que a Doutrina e a jurisprudência terão um grande papel em dirimir esses conflitos, pois em um país como o Brasil em que a desigualdade econômica é tão presente, o que seria um produto ou serviço de luxo e de alto valor, para uma pessoa em extrema pobreza e para uma pessoa de alta renda?
Outra questão importante é que dívidas fiscais (impostos e tributos), crédito habitacional, crédito rural, e pensão alimentícia, também não podem ser renegociadas pelas novas regras.
Deste modo, a nova legislação aumenta a proteção de quem tem muitas dívidas e não consegue pagá-las, e cria alguns instrumentos para conter abusos na oferta de crédito, tendo o consumidor, direito, a uma espécie de recuperação judicial para renegociar as dívidas com todos os credores ao mesmo tempo.
- Assim, de acodo com a nova lei, antes de assinar um contrato de empréstimo ou de uma compra parcelada, as empresas serão obrigadas a informar, além das informações básicas que o CDC já exigia, como preço e o número de parcelas:
- Custo efetivo total e o seu detalhamento;
- Taxa efetiva mensal de juros;
- Taxa de juros de mora e total de encargos para o atraso do pagamento;
- Número das prestações e prazo de validade da oferta (que deve ser de no mínimo dois dias);
- Direito do consumidor ao pagamento antecipado.
De acordo com a nova lei, os bancos estão proibidos de ocultar aos consumidores, os riscos de contratar um crédito.
Deste modo, as instituições financeiras devem cultivar a transparência ao consumidor durante o processo de contratação.
Também, de acordo com a nova lei, ficou proibido aos fornecedores de crédito:
- Conceder um empréstimo sem consultar serviços de proteção ao crédito, como SPC Brasil e Serasa Experian, ou sem avaliar a situação financeira do consumidor.
- Também não será permitido assédio ou pressão de venda de produtos e serviços, mormente para idosos, analfabetos, doentes ou pessoas em estado de vulnerabilidade agravada.
- É vedado ainda, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não, indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor.
- É defeso, ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo.
Se a instituição financeira não cumprir com a Lei?
O consumidor que buscou a renegociação da dívida diretamente com a instituição financeira e não obteve resposta, pode registrar sua reclamação no SAC, ouvidoria do banco, ou pelo SNDC (Serviço Nacional de Defesa do Consumidor) que engloba os canais consumidor.gov, Procons e Defensorias Públicas.
Caso os empresários não cumpram com as novas exigências, contribuindo para o endividamento do consumidor, o CDC deixa expresso que os fornecedores de crédito poderão ser obrigados a reduzirem qualquer tipo de acréscimo (como os juros) do valor contratado.
A empresa também será obrigada a aumentar o prazo de pagamento do empréstimo previsto no contrato original, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.
Como ficam as renegociações das dívidas?
O consumidor que estiver superendividado porerá recorrer à justiça para resolver sua situação.
Assim, o juiz poderá instaurar um processo de repactuação de dívidas, com a presença de todos os credores, por meio de uma audiência conciliatória.
Deste modo, no ato, o consumidor deverá apresentar uma proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservada a sua renda básica (mínimo existencial) para as necessidades essenciais, manifestando os credores se aceitam ou não a proposta apresentada.
Homologado o acordo, este terá valor de sentença judicial, em que a dívida estará toda detalhada, com o número e valor das parcelas, descontos na multa e nos juros, e a duração do plano. A sentença também definirá quando o devedor será retirado dos cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.
A lei também autoriza, que para os credores que não aceitem a renegociação, estes irão para o final da fila, e receberão após quem fechou o acordo com o devedor.
Caso o credor sequer compareça à audiência, o juiz poderá suspender a cobrança da dívida, das multas e dos juros enquanto durar o acordo.
E caso os credores não aceitem o “plano de recuperação” apresentado, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório, importante mecanismo que assegurará ao consumidor o seu mínimo existencial, através da chancela do Magistrado.
Este plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas (art. 104-B).
Importante lembrar que o juiz estará vinculado ao plano de recuperação compulsório, ao limite mínimo do valor original da dívida, haja vista que o procedimento conciliatório não vai reduzir o valor do débito existente, pois não é o caso de ação revisional de contrato que afasta as cláusulas abusivas.
Todavia, nada impede que o consumidor entre com a Ação Revisional, e posteriormente, na fase de liquidação, requeira o plano de recuperação para o credor.
Outra inovação trazida pela Lei, é que com o aumento dos casos de fraudes bancárias, com o uso de cartões de crédito sem conhecimento do seu titular, caso haja alguma reclamação do consumidor junto às instituições financeiras, contestando os valores que desconhece, fica vedada às instituições cobrarem este valor do consumidor, enquanto não for solucionada a controvérsia.
Para tanto, assim que percebida a fraude, o consumidor deverá notificar a administradora do cartão, com pelo menos 10 dias de antecedência da data de vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa, e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação.
Outra ponto da Lei que visa combater as fraudes bancárias, especialmente nos cartões de crédito, é o inc. III do artigo 54-G, quando formaliza que é vedada às instituições financeiras impedir ou dificultar, em caso de utilização fraudulenta do cartão de crédito ou similar, que o consumidor peça e obtenha, quando aplicável, a anulação ou o imediato bloqueio do pagamento, ou ainda a restituição dos valores indevidamente recebidos.
Outra situação que é importante mencionar, conforme previsto na própria lei, o novo diploma é voltado, mormente à proteção do consumidor pessoa natural, (art. 54-A, caput e § 1º).
Todavia, o conceito de consumidor pode estender-se às pessoas jurídicas, por conta da mitigação da teoria finalista, a qual freou a tendência da exclusão do empresário do conceito consumidor.
Nesta teoria, a lei consumerista incide nas relações interempresariais (empresário-fornecedor/empresário-consumidor), podendo-se afirmar que a execução dos contratos empresariais de consumo sujeita-se as disposições da Lei 14.181/21.
Desta forma, incide a nova legislação nas relações consumeristas entre empresários, desde que se prove a vulnerabilidade de uma das partes, faticamente.
Nestes termos, tratando do empresário individual, este detém maior atenção à aderência das novas regras, uma vez que a lei não exclui este empresário dos direitos ao tratamento do superendividamento, com o intuito de preservar a empresa, muito em razão da unicidade patrimonial que rege essa categoria.
Diante do exposto, vemos que o superendividamento é uma consequência natural e inevitável no capitalismo moderno, baseado na massificação da produção, oferta e aquisição dos bens de consumo. Assim, devem-se socializar os danos por ele causados.
Para tanto, o Estado tem o dever de prevenir, capacitando o consumidor em termos de informação e educação. E também tratar os superendividados, exigindo dos que ganha, com este modelo que dividam os prejuízos causados aos que foram usados para produção de lucro, recebendo seu crédito apenas na parte que o devedor consegue pagar sem abrir mão de suas necessidades básicas.
Nestes termos, o enfrentamento do superendividamento permite que determinado consumidor não fique excluído da sociedade; que não gaste mais do que pode pagar; que seja auxiliado pelos fornecedores que verificarão sua capacidade de reembolso. E que, caso gaste além do que pode pagar, encontre uma maneira saudável de quitar a dívida com os credores.
Ressalta-se que todos perdem com a ocorrência do superendividamento: devedor, credor, sociedade e o Estado. Da mesma forma, todos ganham com a prevenção e a mitigação de seus efeitos.
Artigo redigido pela Dra. Lara Tavares, advogada integrante da equipe Pinheiro Advogados e atuante no Direito do Consumidor.