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A criação do depoimento especial nos crimes de violência sexual praticados contra criança e adolescente

Antes de adentrarmos à inovação legislativa, precisamos trazer a você leitor, que antes da criação do chamado depoimento sem danos, a oitiva das crianças e adolescentes vítimas de violência, era feita perante o juiz e as partes, sem a devida preparação por pessoas capacitadas, ocasionando nas vítimas uma nova forma de violência, provocada pela repetição dos detalhes do abuso com a revitimização secundária.

Assim, no sistema tradicional, a criança, em muitas das vezes sob os olhares do agressor, era indagada pelo promotor, advogado e magistrado, sobre a violência vivenciada, de forma que a pressão de estar em uma sala de audiência, inibia a criança, a qual, não deixava transparecer, ou trazia a certeza em seu depoimento, de que os fatos ocorreram, o que contribuía para a insegurança do julgador em condenar o agressor.

Salienta-se que no processo penal vige o princípio do in dubio pro reo, de modo que, se ao julgador restar apenas uma dúvida de que os fatos realmente ocorreram, a absolvição é medida que se impõe.

Neste sentido, em crimes sexuais, os quais, em sua maioria são praticados às escondidas, e sem testemunhas, e ainda quando há somente atos libidinosos, sem prova material, em que a palavra da vítima é de extrema importância, esta tem que demonstrar a certeza de que o crime ocorreu.

Deste modo, por todo o explanado de como se dava a colheita dos depoimentos das crianças e dos adolescentes antes da alteração legislativa, a insegurança do magistrado em condenar um suposto agressor, sustentado na palavra da vítima, principalmente, quando era a única prova no processo, gerava baixos índices de condenação, o que de uma forma geral provocava uma revolta na sociedade.

Neste aspecto, já que evitar o crime é uma situação impossível, estabelecer penas mais rigorosas, não diferenciando ato libidinoso de conjunção carnal para configuração do crime de estupro, bem como resguardar a vítima e seus relatos como provas, foi que a legislação brasileira avançou.

Assim, a Lei nº 13.431/17, além de alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, criando a técnica do depoimento sem danos. 

Tal normativa, visa tentar solucionar a vitimização secundária da criança ou adolescente, evitando que revivia, no decorrer da investigação ou do próprio processo, a situação de risco que foi exposta.

Por conseguinte, para a realização do depoimento, a criança ou o adolescente fica em uma sala reservada para a colheita do depoimento, por um profissional especializado, podendo ser tanto um psicólogo como um assistente social, fazendo perguntas à vítima de forma indireta, utilizando-se de meios informais, em um ambiente acolhedor e lúdico, aplicando técnicas para que a vítima relate os fatos, sem se revitimizar.

Para tanto, o legislador se pautou na proteção integral, aplicada no Brasil por meio da Constituição Federal, rompendo com as dúvidas que eram impostas na palavra da vítima como valor probatório, conferindo legitimidade em seus depoimentos, principalmente por estes serem colhidos em local apropriado para a oitiva, bem como acompanhado de profissionais qualificados e acolhedores.

Outro ponto importante da Lei, foi de evitar os efeitos catastróficos do tempo, minimizando a chance de esquecimento da violência vivenciada pela vítima, ou contradições em suas declarações em razão do decurso do tempo.

Para os efeitos desta Lei, são formas de violência praticadas contra a criança e o adolescente:

  1. Violência física, entendida como aquela que ofenda a integridade ou saúde corporal, ou que lhe cause sofrimento físico;
  2. Violência psicológica;
  3. Violência sexual;
  4. Violência institucional;
  5. Violência patrimonial.

Desta forma, as crianças e adolescentes vítimas dessas situações serão ouvidas por meio de escuta especializada e depoimento especial.

A escuta especializada é um procedimento de entrevista sobre a situação de sofrimento que a criança e ou adolescente vivenciaram, com objetivo de garantir tanto a proteção como o cuidado da vítima, limitando o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.

Já o depoimento especial, é a oitiva da vítima, perante a autoridade policial ou judiciária, e tem caráter investigativo, no sentido de apurar possíveis situações de violência sofrida. É realizado de forma multidisciplinar (com auxílio de assistente social ou psicólogo), permitindo um ambiente menos constrangedor e lúdico para a busca da verdade real.

Entre os direitos e garantias previstos na lei, o artigo 5º, trouxe que crianças e adolescentes que passaram por uma situação de risco possuem, prioridade absoluta; recebimento de informação adequada; manifestação de desejos e opiniões de maneira confidencial (sem afetar a troca de informações para fins de assistência à saúde e persecução penal), ou permanência em silêncio; assistência jurídica e psicossocial; possibilidade de oitiva em horário que lhe for mais adequado e conveniente, sempre que possível; segurança.

O artigo 11 da Lei, prevê ainda, que o depoimento especial deve ser realizado uma única vez, mormente para se evitar a revitimização da criança ou adolescente, através de produção antecipada de prova judicial (art. 156, I, do CPP).

Neste aspecto, importante ressaltar que a prova antecipada será realizada em duas situações: quando a criança for menor de sete anos; ou quando a criança, o adolescente, ou jovem de até 21 anos, estiver em situação de violência sexual.

Em referidas situações, deve-se buscar a realização na fase processual, todavia, nada impede que a polícia judiciária possa obter as informações mínimas sobre o fato delituoso, até porque, na maioria das vezes, os crimes de natureza sexual são praticados sem a presença de testemunha, de forma que a prova acaba sendo frágil, podendo o delegado, diante dessa situação, proceder com a escuta especializada.

Acerca dos aspectos formais, o depoimento especial abrange: local apropriado, lúdico, acolhedor, que garanta à vítima privacidade e proteção; resguardo da vítima de qualquer contato, ainda que visual com o suposto acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça ou constrangimento; gravação do depoimento em áudio e vídeo com transmissão em tempo real para sala de audiência, podendo ser tal medida mais restrita, caso haja risco à vítima; medidas de preservação da intimidade e privacidade, inclusive com a tramitação do processo em segredo de justiça.

Pela legislação, as politicas de atendimento à criança e adolescente deverão ser integradas, especialmente em relação à saúde, assistência social e segurança pública, devendo ser promovidas em todos os níveis federativas, com capacitação interdisciplinar, celeridade, e monitoramento periódico.

Acerca da proteção da criança ou do adolescente, o artigo 21 dispõe sobre algumas medidas para proteger a vítima de eventuais riscos, de forma que algumas já podem ser determinadas diretamente pela autoridade policial. Vejam: a) evitar o contato direto com o suposto autor da violência – tal medida pode ser decretada de ofício pelo delegado por imposição do artigo 9º da Lei 13.431/17; b) inclusão em programa de proteção às vítimas ou testemunhas ameaçadas; c) inclusão da vítima e de sua família nos atendimentos a que têm direito perante aos órgãos socioassistenciais (segundo artigo 101, IV do ECA).

Há também algumas medidas que apenas podem ser autorizadas pela autoridade judicial: d) afastamento cautelar do investigado da residência ou local de convivência, em se tratando de pessoa que tenha contato com a criança ou o adolescente; e) prisão preventiva do suspeito (se preenchidos os requisitos do artigo 312, e nas hipóteses do artigo 313, ambos do CPP); f) produção antecipada de prova por meio do depoimento especial (representação que pode ser direcionada diretamente ao Judiciário).

Frisa-se que nas situações envolvendo criança menor de sete anos ou em situação de violência sexual, a produção antecipada de prova por meio do depoimento especial será obrigatória, nos termos do artigo 11, parágrafo 1º.

Neste aspecto, verifica-se também que a intenção do legislador foi de resguardar a prova, haja vista que em casos de violência sexual, mormente quando a vítima é criança ainda na primeira infância, e que realiza um acompanhamento psicológico eficaz, as memórias podem ser perdidas, e assim, à prova sobre o fato.

Assim, a oitiva da criança ou do adolescente como prova antecipada, além de evitar a revitimização, vem como uma forma de não perder a prova, que em casos de crimes sexuais, que geralmente são praticados às ocultas, em locais ermos e sem testemunhas, a palavra da vítima, quando harmônica com os demais elementos, torna-se de extrema relevância para formar a convicção do julgador.

Outro ponto a se ressaltar na legislação, é que a criança ou adolescente, em muitas das vezes, pode mostrar-se resistente para conversar a respeito do ocorrido, sentido vergonha, culpa, medo por coação do abusador, medo de não mais pertencer à família, de forma que a oitiva por profissionais capacitados, em um ambiente que não seja uma sala de audiência ou delegacia, não causará ainda mais trauma na vítima e o depoimento será ainda mais eficaz.

Importante ressaltar que é vedada a leitura da denúncia ou outras peças processuais à criança e ou adolescente, nos termos do artigo 12, inciso I.

Pontua-se que o depoimento sem danos, é acompanhado pelo advogado, juiz, ministério público e réu, de outra sala, por sistema audiovisual que grava a conversa da vítima com o profissional técnico, o que permite que formulem perguntas, a qual, é repassada à criança pelo técnico de forma adequada, de modo a esclarecer os fatos. Após a oitiva, a mídia é juntada aos autos, servindo como prova.

Destarte, verifica-se que a técnica do depoimento especial, teve como objetivo resguardar os interesses da criança e do adolescente vítimas de violência, garantindo-lhes a ampla proteção, bem como salvaguardar a eficiência da prova.

Ademais, é nítido a eficiência do depoimento especial, mormente nos casos em que o depoimento da vítima é o único meio de prova.

Por fim, não obstante não seja possível erradicar o cenário de violência sexual, observa-se que a legislação brasileira vem se endurecendo, bem como garantindo proteção às vítimas, que não precisam ser reinquiridas e revitimizadas por diversas vezes durante o processo, garantindo à proteção integral às crianças e adolescentes prevista na Constituição Federal.

Artigo escrito pela advogada Dra. Lara Raysa Tavares de Souza, atuante no Direito Penal e integrante da equipe Pinheiro Advogados.

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